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domingo, 9 de novembro de 2014

ANÁLISE DO POEMA QUASE DE MARIO DE SÁ-CARNEIRO
Autora
Adriana Alves de Lima – 5º período de Letras Português
Universidade Federal do Acre - UFAC
  1. Introdução
A análise do poema “Quase” de Mario de Sá-Carneiro faz parte de “Dispersão” (1914) que, juntamente com “Indícios de Oiro” (1937) e “Poesias” (1946), constituem a obra poética de Mário de Sá-Carneiro. Este escritor, nascido em Lisboa em 19 de Maio de 1890, principiou a sua carreira individual como contista (Princípio, 1912, A Confissão de Lúcio, 1914, Céu em Fogo, 1915). Em 1913, em Paris, descobre o seu veio lírico. Vai tornar-se um dos três mais importantes poetas modernistas portugueses, com Pessoa e Almada Negreiros, e um excelente poeta, independentemente da geração do Orpheu. Foi ele realmente um dos mentores, fundador e até financiador (com o dinheiro de seu pai enviado para Paris) das duas revistas Orpheu publicadas em 1915, aventura em que teve a companhia de Luís de Montalvor, Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Ronald de Carvalho.
Nos princípios do séc. XX, em plena Grande-Guerra, recebiam-se influências de toda a Europa e estes jovens artistas e escritores, alguns deles vivendo em Paris, como Mário de Sá Carneiro, traziam as novidades literárias e, sobretudo plásticas do futurismo e correntes afins. Com a Orpheu procuraram fugir ao conservadorismo da época, em Portugal, e ansiavam agitar as inteligências e as sensibilidades dos “lepidópteros” - termo usado por Sá-Carneiro para designar aqueles que estavam na retaguarda artística ou cultural, em confronto com a modernidade, aqueles que viviam da luz alheia, cativos dela como borboletas. Na Orpheu publicaram as suas peças de escândalo: poesias sem metro em que pretendiam revelar as profundezas do inconsciente sem passar pelo crivo da razão, como era o caso da poesia automática, não corrigida, de pendor surrealista. A publicação da revista desencadeou uma onda de violência e os seus autores eram apontados a dedo nas ruas e chamados “poetas paranóicos”.
Na Orpheu revelaram-se tendências várias, que vão desde a permanência do simbolismo e do decadentismo de Eugênio de Castro e António Nobre, até às mais inovadoras como o futurismo. Sá-Carneiro vai revelar várias destas tendências na sua obra. "Manucure", um dos poemas escolhidos para o TriploV, é o mais eloqüente manifesto do futurismo em Portugal, centrado naquilo a que hoje chamamos "fonts", e que ele certamente adoraria ver em movimento - são os recursos de uma nova arte que ele explora sem ter praticado, a publicidade, tornada profissão nova, que já Almada Negreiros exerceu, nos seus conhecidos cartazes de cinema.
2.      Objetivos
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            A análise tem por objetivo mostrar como uma nova forma de poesia se anunciava nessa época, e como as primeiras manifestações dessa nova poesia, não eram bem aceitas na sociedade que aprova ou reprova os poemas. Para tal interpretação, o título do poema será de suma importância (Quase: advérbio, aproximadamente, pouco menos). Assim, temos também por objetivo, interpretar a poesia, com as novidades literárias, mas uma poesia sem metro em que pretendia revelar as profundezas do inconsciente.
3.      Desenvolvimento
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No poema de Mario de Sá-carneiro, pode-se perceber o que é quase? É um advérbio, aproximadamente. Pouco menos, aquilo que não deu certo, algo que ficou inacabado, ou que por pouco não deu certo. Um sonho, um desejo que não se consolidou.
Tendo como vocábulo-chave o advérbio quase, exposto já no título, o poema configura essa dor através de um eu lírico que ocupa uma posição existencial intermediada por dois pólos opostos: o além, representando o desejo de atingir um ideal, e o aquém, expressando a frustração desse desejo. Outras temáticas igualmente recorrentes na poética de Mário de Sá-Carneiro ocupam espaço em nossa análise, a exemplo do forte egocentrismo, da presença do mito de Ícaro e do intenso cromatismo.
Nessa primeira estrofe percebe-se que o eu - lírico faz referências ao mito de Ícaro, este impulsionado pela alegria da liberdade, esqueceu que suas asas eram feitas de cera e que não podia chegar tão perto do sol, que quase virou brasa.
Um pouco mais de azul - eu além, a felicidade, de sentir-se liberto é tão empolgante, que vôo ao azul do céu, este foi tão longe que quase era além
Pra atingir, faltou-me um golpe de asa.
Essa intextualidade nos remete novamente ao mito de Ícaro que ao atingir uma determinada altura chegou tão longe que sua asa feita de cera ao chegar perto do sol derreteu e mesmo caiu.
Ou seja, no poema quase o eu – lírico se revela como alguém que nunca se realiza, e no momento que quase este atinge o que quer acaba sendo interrompido.
Na segunda estrofe o eu – lírico fica na dúvida, sem saber se tudo é
Assombro ou paz? Porque ao mesmo tempo em que este atinge o auge, sente a paz por causa da liberdade, mas é tomado pelo assombro ao cair.
Em vão... Tudo esvaído...
Ou seja, tudo o que este fez foi em vão, pois está vendo tudo se esvaindo, se esvaziando, se desfazendo, como em um
Num baixo mar enganador d’ espuma, observa-se a metáfora o mar um substantivo com o adjetivo de enganador d’ espuma.
O que é espuma? Temos a impressão que é algo fofinho, confortável.
E o grande sonho despertado em bruma
O grande sonho – Ó dor – quase vivido.
Quando o eu – lírico se desperta do grande sonho de sentir-se livre, esse grande sonho causa dor, porque este foi quase vivido, não chega a se realizar, porque não se concretizou, assim como no mito de Ícaro, no momento que ela se liberta do labirinto, ele fica tão empolgado que esquece dos conselhos do pai, de que não pode chegar perto do sol, e ao ver suas asas derretidas, o seu sonho quase se realiza.
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a expansão...
Mas na min’h alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
Percebemos que o eu- lírico se confunde com o biográfico do autor, quase amor porque nunca se realizou amorosamente, nunca casou, não constituiu uma família, quase triunfo porque não conseguiu alcançar o sucesso profissionalmente, porque desistiu da faculdade se dedicando a vida boêmia.
Há no verso seguinte uma intextualidade com a bíblia como no princípio “era o verbo, e o verbo se fez carne” e o mesmo Deus prevê o fim. É como se Mario previsse a morte.
Mas na minh’alma tudo se derrama
Como sabemos depois que a alma se esvazia, não tem mais nada. Mesmo disnte disso o verso posterior ele diz:
Entanto nada foi ilusão.
Mesmo sabendo as conseqüências da morte, do suicídio
Nada foi ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... –

Como este sentia dor de nunca ter se realizado, de sempre ser só quase, isso é frustrante, querer conquistar algo e nunca conseguir, ter que se conformar só com o quase, só com a possibilidade de tentar e nunca conseguir, de se sentir fracassado, como se fosse incapaz de alcançar a liberdade, se preparar, mas não voar, não conseguir.
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou....
Ao contrário de Ícaro, que voa, e mesmo sem ter sucesso, este conseguiu se libertar, mesmo que tenha sido pela morte. Esta pode ser um meio de libertação, sendo que este conceito vai contra os dogmas da igreja. Até porque o conceito que temos de quem se mata é que vai para o inferno.
Em "Quase", como em outros poemas, aparece à problemática do Eu e do Outro, típica da modernidade (“Je est un autre”, como diz Rimbaud), a que não é alheia também a heteronímia pessoana – a descoberta de que “eu” é outra pessoa, de que não nos conhecemos realmente. A cisão entre Eu e o Outro, embora seja comum à geração do Orpheu, neste poeta ultrapassa o domínio da filosofia para se tornar um drama pessoal, experimentado na vivência quotidiana. É ele o motivo central da sua obra, manifesto na crise de personalidade, na inadequação do sentimento ao que desejaria sentir. Maria Ema Tarracha Ferreira perfilha idéia próxima: "Quase é talvez o poema de Sá Carneiro que melhor exprime a obsessão do fracasso da existência, sugerindo simultaneamente a vivência ideal através de símbolos e de processos postos em voga pelos decadentistas”.[1]
Com efeito, em “Quase” manifesta-se este abismo entre o sentimento do que o poeta julga ser e a incapacidade de alcançar o que deseja agravado pela circunstância de pouco ter faltado para lá chegar. A primeira e última quadras constituem uma chave que explica o motivo da desilusão enunciada no corpo do texto: só por lhe faltar esse “quase” não conseguiu ser feliz, só por um nada julga não ter chegado a onde o sonho o levou. Pouco faltou para ter vivido o amor e a plenitude, tão grande esta que, a alcançá-la, teria transcendido a condição humana para se confundir com o céu e suas divindades - “Um pouco mais de azul – eu era além”. Daí o lamento obsessivo, pois quem não deseja não sofre: “Se ao menos eu permanecesse aquém...”. Aquém de quê? – aquém do “grande sonho”, e com ele do assombro, da paz, do amor, do triunfo, da paixão, do princípio e do fim, da expansão. Que lhe faltou para chegar onde queria? - não desbaratar os momentos de alma, faltou-lhe pôr altar nos templos adequados, faltou-lhe levar os rios ao mar.
O que domina é o sentimento de não ter cumprido o seu destino. Destino de que, dentro de si, apenas encontra “indícios”. É como se estivesse fechado dentro de si mesmo sem poder chegar ao absoluto - “Ogivas para o sol – vejo-as cerradas”. Porquê tão infeliz? - “faltou-me um golpe de asa”, não foi capaz de chegar lá, estando tão perto. É um drama real, construído como um poema. O drama de ser um falhado na vida, o drama de todas as gerações que se consideram perdidas.
Poderá a biografia explicar tanta amargura? É preciso distinguir a biografia do poeta e a biografia do autor.
Órfão de mãe com dois anos, Mário de Sá-Carneiro foi criado com uma ama em Camarate. O pai, militar ausente, cerca-o de cuidados e de bens materiais. A sua educação é considerada pouco completa, não tendo tido, ao contrário da prática corrente na época, uma formação religiosa. Fez o liceu em Lisboa que completou já com 21 anos. Seguiu para Coimbra para cursar Direito, mas desistiu, como aconteceu em Paris quando entrou para a Sorbonne, em 1913. Aqui viveu, sempre recorrendo à bolsa paterna, até a sua morte em 26 de Abril de 1916. Durante estes três anos voltará por duas vezes a Lisboa. É nestes períodos de alguns meses que dirige com Pessoa a revista Orpheu.
Maria Estela Guedes, de cuja antologia extraímos os poemas de Mário de Sá-Carneiro, não aceita a ideia de que a biografia do poeta justifique a sua temática nem adota posições biografistas no entendimento da obra. O que os poemas espelham, na sua maneira de ver, é uma outra história de vida, criada como obra literária e vivida como real: “Um punhado de acontecimentos numa curta vida; poucos, não pela vida curta mas porque ele se afastava dela. A sua biografia psíquica é bem mais complexa e rica. (...) da vida do poeta só restam palavras; foi disso que se alimentou. (...) A sua obra roça pelo Além num repúdio evidente do Aquém. Não há grandes fronteiras entre realidade e imaginário, como se o poeta fosse uma criação literária. (...) é interessante e enriquecedor como experiência conhecer a desproporção entre homem e obra.” [2]
Pensando na falência de "Quase" e na sua superação literária, nota-se que de fato há um abismo entre o que o poeta pensava ou deixou expresso nos poemas e o que a História lhe reservou. Sá-Carneiro, frustrado e infeliz, acabou por pôr fim à vida, em Paris, no quarto de hotel em que vivia, três anos depois de o ter escrito, quando ainda nem 26 anos completara. Um poema que o autor considera falhado com toda a sua vida, quando é dos mais belos da literatura portuguesa, assim como quase todos os da sua obra. Para os leitores, para o consenso literário, a contradição é por isso profunda: longe de não ter alcançado o que desejava, longe de lhe ter faltado só um quase para chegar ao seu destino, Mário de Sá-Carneiro voou muito para além do que sonhou.
A sua obra é plena, grande, de uma beleza deslumbrante.

  1. Considerações finais

O poema sendo compreendido como uma quebra com o pré- estabelecido e além do anúncio do suicídio. É possível observar a crise existencialista pelo qual o autor passava e as conturbações, e os versos como estes entrelaçam impressões, cujo movimento não se resolve ao fim, permanece um enigma.

  1. Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Paulo Roberto de. A parábola de Ícaro. Disponível em:
http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1346IcaroParabola.html. Acesso em: 11 de Junho de 2010
 FERREIRA, Maria Ema Tarracha – Mário de Sá-Carneiro, Poesias. Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, Lisboa, 2000.
 GUEDES, Maria Estela - Obra Poética de Mário de Sá-Carneiro. Colecção Poetas, Editorial Presença, Lisboa,1985.
PAIXÃO, Fernando. Mário de Sá-Carneiro: O rodopio das imagens poéticas. 2ª Ed. Iluminuras. São Paulo, 2001.



[1]  FERREIRA, Maria Ema Tarracha – Mário de Sá-Carneiro, Poesias. Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, Lisboa, 2000.
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[2] GUEDES, Maria Estela - Obra Poética de Mário de Sá-Carneiro. Colecção Poetas, Editorial Presença, Lisboa, 1985.


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